Recebi a notícia da nova exposição do Museu Afro Brasil, que
abriu no dia 07 de agosto, de minha amiga dançarina e antropóloga Luciane Ramos
com muito espanto e decepção: "A sedução de Marilyn Monroe".
Pessoalmente não considero Marilyn (1926 - 1962) a grande atriz
que a mídia deseja fixar em nossas mentes. E não acho que sua beleza seja
fascinante, hipnotizante, única, dentre outros adjetivos um tanto hiperbólicos
que são utilizados quando muitos se referem à sua figura.
Assisti alguns filmes nos quais ela contracena, como o delicioso
"Quanto mais quente melhor" (1959), de Billy Wilder. Muito bom, muito
engraçado e com atores maravilhosos no elenco como o Jack Lemon (1925 - 2001),
que minha geração conheceu bem idoso e Tony Curtis (1925 - 2010). Coisa de cinéfilo.
Ela estava muito bem no papel, neste filme engraçado que é uma comédia
deliciosa do tipo que não vemos mais hoje em dia, com Malicia, entretanto, sem
peitões balançando (acho que porque tinham aqueles sutiãs armaduras).
Certamente, o fato da loira ter falecido na flor da idade, aos
36 anos, e de forma trágica e inexplicável, como ocorreu com outros ícones da
cultura pop como Jimi Hendrix (1942 – 1970), Janis Joplin (1943 - 1970), Elis
Regina (1945 – 1982), dentre outros que faleceram nos últimos anos, fez com que
sua perda se tornasse muito impactante, tendo em vista que era uma atriz
famosa, com muitos fãs e que ainda estava em atividade. Gostamos destas
histórias trágicas. Se não gostamos, ao menos as alimentamos comprando livros,
lendo notícias etc. Ou seja, fortalecendo e propagando o mito.
O Museu Afro Brasil, como diz o curador Sr. Emanoel Araujo, é,
antes de tudo, um museu de arte. Só por esta definição ouvida durante os muitos
anos nos quais trabalhei na instituição, já é possível notar a incoerência da
exposição proposta que trata do fortalecimento da imagem de Marilyn Monroe com
base na festejada sensualidade da atriz. Não são seus dotes dramáticos,
portanto, artísticos, o foco deste acontecimento, mas sim o enaltecimento de
sua figura como a da mulher fatal e irresistível. Não são os papéis
interpretados por ela que são citados e apresentados aos visitantes, mais sim
seus atributos físicos interpretados por vários artistas por meio de suas obras
de arte.
Poderia aprofundar este texto apontando outros pontos desta
incoerência, mas pensar neste museu como espaço de arte que homenageia uma
mulher branca e loira por sua sensualidade e erotismo, já é o suficiente para
percebemos como esta exposição está absolutamente deslocada.
Para além disso, é preciso lembrar que o Museu Afro Brasil foi
aberto em 2004 sendo considerado uma ação afirmativa. Segundo documento
elaborado por funcionários da instituição, o Museu Afro Brasil tem como missão
e visão:
- Promover o reconhecimento, valorização e preservação do
patrimônio cultural brasileiro, africano e afro-brasileiro e sua presença na
cultura nacional.
- Ser instituição de referência em ações museais, unindo
História, Memória, Arte e Contemporaneidade voltadas, prioritariamente, à
cultura brasileira, africana e afro-brasileira.
Deste modo, me parece absolutamente fora de contexto a
realização desta exposição em homenagem à diva platinada.
Fico aqui imaginando os professores que se preparam durante
semanas ou meses, para conseguir levar seus alunos ao Museu Afro Brasil e,
assim, ampliar os repertórios dos mesmos em relação à Lei 10.639/03; que com
muita dificuldade conseguiram transporte, autorizações, por vezes, alimentação,
para uma manhã ou tarde na qual seus estudantes se defrontariam com as imagens
e biografias de personalidades basilares da história dos afrodescendentes em
nosso país, para além dos outros aprendizados.
Penso naqueles educadores que com muito custo, conseguiram
demonstrar aos seus alunos que à despeito do que prega as várias mídias que
exaltam constantemente o padrão branco como o ideal e único, que os negros e
mestiços são diferentes deste padrão, e que reside nesta diferença as
qualidades estéticas deste segmento étnico. Que sim, a pele escura, os narizes
largos, os lábios maiores, os cabelos crespos, que todas estas características
às quais chamamos de fenótipo, são belas se não tivermos como norteadoras as
características do segmento branco.
Vislumbro estas crianças e adolescentes ansiosos por se
depararem com as culturas africanas e afro-brasileiras: o
que encontraremos neste Museu Afro Brasil? E,
ao adentrar no espaço repleto de mistérios, porque os museus ainda representam
um enigma para os que não o frequentam habitualmente, vêem várias obras de
arte, representando Marilyn Monroe e, especialmente, preparadas para esta
homenagem.
O que ocorre? Faltam mulheres negras que possam ser homenageadas
e reverenciadas? Por que esta exposição não está em espaços mais adequados como
o Museu da Imagem e do Som, o MIS?
Por que não Lélia Gonzalez (1935 – 1994), a primeira intelectual
negra de nosso país? Ou ainda, Sueli Carneiro, filósofa e criadora da ONG
Geledés? Ou Raquel Trindade, pesquisadora, pintora e dançarina, herdeira do Legado
do poeta Solano Trindade? Por que essas dentre tantas outras figuras femininas
negras não são temas de exposições na instituição?
Por que ressaltar as qualidades sedutoras e Marilyn Monroe,
colocando novamente as mulheres, de modo geral, no papel de objetos do
desejo?
Tenho pensando muito a que se presta esta exposição. Que o
curador da instituição é um homem visionário, ousado, desafiador deste sistema
que estagna isto é irrefutável. Entretanto, o que pretende com a polêmica
exposição? O que ganhamos nós cidadãos, negros e brancos, com esta mostra em
museu que pretende salvaguardar, propagar e visibilizar a história dos
afrodescendentes em nosso país. História esta tão omitida, forjada e
eclipsada...
E daí que o tatatatatatatavó de Marilyn Monroe fosse negro? Essa
foi uma das explicações que ouvi por aí. Tsc, tsc, tsc, avançamos muito com a criação deste museu, sem
dúvida que muitas exposições exemplares e fundamentais já passaram por este
espaço, como Brasileiro, Brasileiros,
O Benin está vivo ainda lá, entre
outras, mas esta se mostra como um retrocesso: três passos para frente, dois
para trás.
A filósofa Sueli Carneiro, em alguns de seus textos como "Enegrecendo Feminismo" e "Mulheres em Ação", realiza profundas críticas à exacerbada exposição de loiras em nossa sociedade. Acredito que suas palavras servem para complexizar a exposição citada, demonstrando que é uma homenagem um tanto inadequada se pensarmos no contexto brasileiro:
Nesse sentido,
racismo também superlativa os gêneros por meio de privilégios que advêm
da exploração e exclusão dos gêneros subalternos. Institui para os gêneros
hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis numa competição igualitária. A recorrência abusiva, a inflação de mulheres loiras, ou da
“loirização”, na televisão brasileira, é um exemplo dessa disparidade.
E mais...
Em relação ao
tópico da violência, as mulheres negras realçaram uma outra dimensão do
problema. Tem-se reiterado que, para além da problemática da violência
doméstica e sexual que atingem as mulheres de todos os grupos raciais e
classes sociais, há uma forma específica de violência que constrange o
direito à imagem ou a uma representação positiva, limita as possibilidades
de encontro no mercado afetivo, inibe ou compromete o pleno exercício da
sexualidade pelo peso dos estigmas seculares, cerceia o acesso ao trabalho,
arrefece as aspirações e rebaixa a auto-estima.
Esses são os
efeitos da hegemonia da “branquitude” no imaginário social e nas relações
sociais concretas. É uma violência invisível que contrai saldos negativos
para a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade e sexualidade destas. Tal dimensão da violência racial e as particularidades que ela
assume em relação às mulheres dos grupos raciais não-hegemônicos vem
despertando análises cuidadosas e recriação de práticas que se mostram
capazes de construir outros referenciais.
Segundo Antonia
Quintão, historiadora citada por Carneiro:
...a exclusão
simbólica, a não-representação ou distorções da imagem da muher negra
nos meios de comunicação são formas de violência tão dolorosas, cruéis e
prejudiciais que poderiam ser tratadas no âmbito dos direitos humanos.
Nas palavras do curador:
A sedução de Marilyn Monroe
O Museu é um espaço de reflexão cultural, ele também exemplifica o modus operandi de uma sociedade, o significado social de um povo e sua visão estética. Esses são fatores pelo quais um povo sedimenta seus princípios civilizatórios.
A definição tipológica de um museu não o impossibilita nem pode ser entrave para as diversas discussões que essa própria sociedade repre
senta e apresenta.
Os museus, portanto, são espaços abertos como palco onde a cultura material e imaterial de um povo possa estar viva e latente, revivendo fatos e acontecimentos recentes ou passados da nossa memória e da nossa história.
A globalização nos absolveu do complexo de culpa, de poder olhar o mundo como coisa nossa, sendo assim a exposição sobre os cinquenta anos da morte da atriz norte-americana Marilyn Monroe e o drama de sua vida pertencem a todos como grande fenômeno pop do inconsciente coletivo nos quatro cantos do mundo.
Isso responde a todos aqueles que acham estranho essa exposição do Museu Afro Brasil.
Não quero pensar numa ponta de racismo em limitar os conteúdos das exposições aqui realizadas, elas são elucidativas para enriquecer as expressões de muitos povos como africanos, europeus, americanos, brasileiros, enfim, interessados na memória, na vida, na arte, na história em volta de nós.
Emanoel Araujo
Diretor Curador
Exposição "A Sedução de Marilyn Monroe" - Museu Afro Brasil
Horário de visitação: Ter/Dom - 10h às 17h
Entrada Gratuita.
Bem, não podemos ser escravizados por um "modus operandi" que tem por princípios implícitos justamente nos excluir e omitir a nossa importância para a história do Brasil e do mundo.
Você, que dedicou alguns minutos de seu dia para ler este texto que, talvez tenha agregado alguma reflexão ou informação nova, ou ainda, te fez pensar no quanto "eu" sou racista e reacionária por não compreender esta exposição tão inovadora neste museu maravilhoso e tão significativo para todos nós, brasileiros. Escreva aqui embaixo qual é a mulher negra, preferencialmente atriz, já que estamos a falar de atrizes, que você gostaria de ver numa exposição no MASP, o Museu de Arte de São Paulo, ou no MAM, o Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Aqui vão as minhas indicações e palavras finais: chega de rosnar e depois dar a patinha.
P.s.: se você não conhece nenhuma atriz negra brasileira ou não que poderia ser homenageada, compre e leia, ou apenas consulte Mulheres Negras do Brasil, de Érico Vital Brazil e Schuma Schumaher, da Editora Senac, publicado em 2007.
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Léa Garcia, a encontrei no Rio de Janeiro em maio, linda e elegante. Outra fundadora do Teatro Experimental do Negro. |
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Maria Dealves, linda, sensual e excelente atriz. Também sumida das telas. |
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A ex-mulata do Sargentelli (1924 - 2002), Solange Couto, exuberante e muito boa atriz que marcou seu retorno às novelas com a personagem Dona Jura: "não é brinquedo, não!". |